Numa toalha de sangue vi meu rosto.
Deitada na areia fazendo dela meu ombro.
Olhei a tal morte nos olhos.
Fugiu quando um anjo do chão me ergueu.
Perdi os sentidos.
Todos os dias sonhos com uma alma.
Que comigo cresça.
Que me entenda.
Todos os dias sonho com outra alma.
Que dentro de mim nasça.
Que me tranforme.
Perdi os sentidos.
Acordo e vejo teus olhos.
Neles uma lágrima que percorre teu rosto.
Engoles em seco vendo teu fruto perecer.
Já não tens forças.
Já não tenho forças.
Perco os sentidos.
Vi esse mesmo rosto quando nasci.
Uma lágrima assim forte e grossa mas alegre.
Tu sem forças mas feliz.
Eu berrando mas viva.
Perco os sentidos.
Num sonho de devaneio vi o anjo.
Vi-te a ti.
Vi o teu sangue.
Vi-me a mim e ao meu filho.
Vi o meu sangue naquela toalha de praia.
Acordei e vi.
Vi a desilusão em teus olhos.
Por sentires não teres mais forças para me levantar.
Por perceberes que morria.
Morria eu, tua filha.
Morria eu, mãe do teu neto.
Perco os sentidos.
Não me peças perdão por me teres posto neste mundo.
Não te pedirei perdão por ter desistido.
Agora teu sangue e o meu cresce connosco.
E isso traz de volta todos os meus sentidos.
Os amantes sem dinheiro
Tinham o rosto aberto a quem passava.
Tinham lendas e mitos e frio no coração.
Tinham jardins onde a lua passeava de mãos dadas com a água e um anjo de pedra por irmão.
Tinham como toda a gente o milagre de cada dia escorrendo pelos telhados.
E olhos de oiro onde ardiam os sonhos mais tresmalhados.
Tinham fome e sede como os bichos,
E silêncio à roda dos seus passos.
Mas a cada gesto que faziam um pássaro nascia dos seus dedos e deslumbrado penetrava nos espaços.
Eugénio de Andrade
Não quero nada mais.
Nada mais que esse beijo desconhecido que me deste.
Nada mais do que esse sabor em tua boca.
O toque da tua mão e o cheiro da tua pele.
Nada mais que isso é suficiente.
Nada mais que tudo isto.
É tudo o que já sabia.
Reconheci-te.
Num instante.
Uma palavra só.
Nada mais que isto fez todo o sentido.
Reencontrei-me no teu corpo.
Achei-me onde desejava.
Não preciso nada mais.
Quero-te assim.
Assim como és.
Nada mais que isto.
Não preciso.
Não preciso de nada mais.
Nada mais do que és.
Não posso mais deixar-me de olhos fechados.
Assim te imaginei perfeito.
Vivendo comigo a mentira ideal.
Procurando esconder segredos e a realidade.
Não posso mais fazer de conta.
Que existes e és.
Porque foi tudo imaginação minha.
Porque foi tudo mentira.
Nada me culpo nem a ti.
Foi porque assim o quisemos.
Enganamo-nos mutuamente.
Perdemo-nos da verdade.
Agora ha toda uma vida a recuperar.
Ha toda uma imaginação a deixar.
Há todo um mundo a redescobrir.
No que me toca não existes.
Porque nada me deixaste.
Porque nada te ensinei.
Porque nada aprendi.
És e foste uma produção.
E o que quero é uma realidade.
Real e apenas possível sem ti.